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Pós verdade e a convicção dos fatos que não se veem - Por Flavio Siqueira
07/01/2021 20:09 em Textos
Mais do que nunca é importante tratarmos do tema "pós verdade". O termo não é novo. Foi registrado pela primeira vez em 1992, em um artigo na revista The Nation.
Naquele tempo não havia internet e foi necessário quase trinta anos para que um conceito subjetivo se transformasse no lema de uma era.
A internet não é a causa do fenômeno, mas funciona como catalisadora de sentimentos difusos cultivados por enormes parcelas da população que nutriram a vida inteira a legítima sensação de estarem sendo enganadas.
Tudo o que podiam fazer era desconfiar, reclamar no trabalho e, de quatro em quatro anos, votar. Cenário ideal para uma revolta em processo de maturação que adiante explodiria.
Foram décadas de ressentimento, de impotência, até que (felizmente) as redes dessem oportunidades para que as pessoas se comunicassem sem os filtros tradicionais.
O bônus foi uma magnífica revolução nas comunicações e tudo de bom que acompanhamos até aqui, mas, como era de se esperar, o ônus não tardou: Na era da pós-verdade os fatos tem bem menos relevância do que as versões, desde que essas se conectem a um sentimento.
Verdadeiras massas são mobilizadas (a esquerda e a direita) a partir da emoção, fenômeno já há muito explorado pela religião e pela publicidade.
A diferença é que agora ficou muito mais fácil engajar para além do consumo. São prateleiras e prateleiras com as causas que mais se adequem as suas necessidades.
Ganha quem for mais eficaz em fornecer grandes narrativas com poder de transformar anônimos em grandes agentes de transformação do mundo.
Não importa a causa, o que vale é a sensação de relevância, de portar algo que a maioria não tem.
É ingenuidade pensar que Trump e Bolsonaro fundaram esse mecanismo. De um jeito ou de outro a lógica da pós verdade existe há muito tempo.
A diferença é que os dois presidentes, além de entenderem muito bem seu funcionamento, se beneficiaram da evolução tecnológica ao capturar o enraizado sentimento "ante sistema" que silenciosamente crescia na população, sempre colocada em segundo plano.
Até então os agentes da pós-verdade agiam dentro de um esquema meio "analógico", mobilizando sindicatos, grupos sociais e militantes. Se não contassem com a adesão da mídia, era só discurso para convertido.
Isso explica em parte o movimento do pêndulo para a direita na última década.
Se fosse a direita no poder há tanto tempo, seria a esquerda que hoje cultivaria com mais eficácia o fruto do ressentimento das massas, mobilizando-as com as próprias narrativas (como já tem acontecido).
A chamada direita só saiu na frente aproveitando melhor as tecnologias, mas não se engane: Não há monopólios de virtudes ou maldades.
Aliás, o olhar maniqueísta é necessário para fundamentar a sensação de que estamos no meio de uma guerra do bem contra o mal. O apocalipse nos espera em cada esquina.
Alimentar esse sentimento, a existência de um inimigo constante, ainda que ele mude de nome, é essencial para manter o engajamento da tropa.
O que definirá o que é bem e o que é mal variará conforme as crenças de cada indivíduo.
Enxergar as nuances, sem paixões, sem ódios, pode funcionar como antídoto eficaz.
Quanto aos fatos, eles não deixaram de ser importantes, mas têm se tornado cada vez mais secundários diante dos esforços para manipular a opinião pública em direção as convicções que mais beneficiem seus representantes. Isso explica em parte porque a imprensa tem perdido relevância.
Jornalismo não interessa mais.
O público quer show e uma narrativa que alimente seus antagonismos.
É por isso que, mesmo diante de evidências claras, os militantes insistem apaixonadamente em argumentos irreais, trocando a racionalidade necessária pela crença irrevogável em um líder, uma narrativa, uma causa que dê sentido à existência. É a fé dos novos tempos, seguindo à risca o versículo bíblico que diz: "...Fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem."
E a verdade? Ela que de um jeito de se adequar.
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